Sinopse

"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."

sexta-feira, setembro 12, 2014

Paulo Ghiraldelli escreve “Compreender Pelé”

Paulo Ghiraldelli*

Edson Arantes do Nascimento, o Pelé

Pelé disse que se ele fosse ligar para as vezes que o chamaram disso ou daquilo em campo, ele não jogava futebol, e que a reação do jogador Aranha diante da gremista, que o chamou de macaco lá do alto da torcida, pode ter sido exagerada. Falando isso, Pelé despertou mais uma vez a ira do movimento negro.

Mais recentemente a casa da gremista foi incendiada. Tudo leva a crer que algum bobo de uma KKK invertida ou então algum idiota de uma KKK autêntica, querendo ver as coisas piorar, fez isso. Não descarta nenhuma hipótese em um país onde o ódio é enrustido. Em qualquer dos casos, o fato autoriza Pelé a pensar “tá vendo, não falei que era exagero, olha aí o resultado: violência”. Alguns diriam: violência verbal gerou agora violência material, quase que no mesmo sentido do que poderia dizer Pelé.

Mas não é por essa via que os problemas de minoria podem andar. Não é Pelé, nessa sua frase, que está realmente em jogo, ainda que seja sim o caso. O problema é o homem da geração de Pelé.

Pelé ama o futebol mais que tudo. Tudo é secundário diante do futebol. Não é para menos. Muitos atletas, músicos, atores, escritores são assim. Amam o que os fizeram gente mais que pai, mãe, classe, nação, justiça, filhos etc. Parar um jogo, para Pelé, é como parar um missa para um padre.  Mais que muita gente, Pelé sabe o que ele seria ou, melhor, o que ele não seria, sem o futebol. Isso não é pouca coisa.

Pelé não vai entender nunca o movimento negro. Mas é uma pena que o movimento negro não possa compreender Pelé. Ora, por que o segundo tem de entender o primeiro sem a recíproca? Por uma razão simples: um movimento social nem sempre é só um movimento reivindicativo, ele é também uma espécie de consciência de grupo. Uma consciência de grupo deve necessariamente ser superior a uma psicologia individual.

Assim, a “consciência negra” tem de saber como Pelé, negro, nunca se sentiu ultrajado – mesmo que tenha sido. Mas Pelé, negro, mesmo tendo sido ministro, não precisa entender que enquanto ele não se sentia ultrajado, outros se sentiam e outros que não sentiam eram objetivamente ultrajados. Seria ótimo que entendesse. Mas Pelé não se torna moralmente reprovável por não entender. Agora, o movimento negro, ao condená-lo publicamente, sem cuidados, mostra ficar aquém de uma “consciência negra”.

Em outras palavras: a “consciência negra” como qualquer “consciência de grupo” é sempre uma consciência filosófica, digamos assim, e por isso mesmo deve possuir um grau de amplitude de pensamento maior e mais sofisticado que a consciência individual psicológica. Se o movimento negro não entende Pelé como quem não foi capaz de perceber o preconceito racial contra ele mesmo e outros (ele não nega que outros tenham sofrido), acaba por condenar muitos avós e pais negros, que, não raro, desconfiavam que houvesse mesmo algo de errado na relação branco-negro no Brasil, mas não achavam que isso era alguma coisa muito ruim.

Goleiro Aranha, vítima de racismo

A passividade dos negros do passado era sem dúvida maior que a de hoje diante de preconceito racial. Não foi da noite para o dia que a libertação dos escravos aconteceu. Aliás, vendo o quanto ainda há negros que são contra a política de cotas, dá para notar como que a libertação, em um nível psicossocial, ainda está longe de ocorrer. O liberalismo simples que nega a necessidade da política de cotas não serve ao negro, o movimento negro diz corretamente isso, mas há negros individuais, hoje, que não conseguem entender que esse tipo de liberalismo é carcomido para eles mesmos. Ora, se é assim, faz-se necessário entender Pelé. Ele não tem 30 anos. Ele é de 1940. Eu sou de 1957. Eu tive uma irmã de criação negra. Eu sei muito bem em que mundo Pelé viveu e obteve sucesso. Eu aprendi a não julgar os negros que não reagiam, principalmente quando era visível que o que hoje é ofensivo não era ofensivo de modo algum para eles. Era para nós, os brancos com vergonha de não terem podido fazer mais justiça do que se tinha!

Pessoas como eu aprenderam a ter vergonha alheia quando algum branco da família falava uma frase racista. E mais vergonha ainda quando via que um negro escutava a ofensa e não a tomava como ofensa. Uma pessoa como eu tinha abertura para conversar isso com negros, e saber subjetivamente que a ofensa nem sempre é reconhecida como ofensa em uma situação onde o status quo vigente parece vir posto pelos deuses, como algo eterno, imutável.

Não estou pedindo que integrantes do movimento negro perdoem Pelé. Estou ponderando sobre o quando o movimento negro, o coletivo, o que fala como “consciência negra”, ganharia se soubesse compreender o mundo de Pelé. Caso essa compreensão não venha, o próprio movimento negro vai estar aquém do “conhece-te a ti mesmo” socrático, e não poderá funcionar filosoficamente da maneira que todos esperamos que um movimento desse tipo, de minorias, possa funcionar. Para termos uma democracia liberal avançada, capaz de proteger e promover minorias, só reivindicações não é o bastante. É preciso saber pensar a história. Principalmente a própria história.

Muitas vezes um movimento de minoria se preocupa demais em policiar membros que ele acredita que deveriam estar ao seu serviço. No entanto, não se empenham muito em ajudar alguém que, estando ao seu serviço, foi caluniado. Já vi negros do movimento negro abandonarem brancos amigos que sempre estiveram do lado do movimento negro, exatamente para não ficarem mal com suas bases. E já vi isso ocorrer também com negros caluniados. Já presenciei muitos negros (e brancos ditos democratas) tirarem o corpo fora na hora de proteger um amigo caluniado como racista, seja este amigo de qualquer etnia.

Já vi muita coisa!

Em termos de democracia e política de minorias já passei por muita coisa a ponto de saber que os mocinhos não são tão mocinhos quanto dizem que são, ao se diferenciar do que dizem ser os bandidos.

*Paulo Ghiraldelli, 57, filósofo.

O que Pelé disse: “O Aranha se precipitou em querer brigar com a torcida. Se eu fosse querer parar o jogo cada vez que me chamassem de macaco ou crioulo, todos os jogos iriam parar. O torcedor grita mesmo. Temos que coibir o racismo. Mas não é num lugar publico que você vai coibir. O Santos tinha Dorval, Coutinho, Pelé… todos negros. Éramos xingados de tudo quanto é nome. Não houve brigas porque não dávamos atenção. Quanto mais se falar, mais vai ter racismo.” 10/09/2014.

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